segunda-feira, 6 de maio de 2013

Picolé de Morango


Let's play!

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O frio na barriga que sentira lendo histórias de terror na internet nem de longe lembrou-lhe o medo cruel e verdadeiro de ver, sentado folgadamente em sua cama, um fantasma.

-Vendo coisas assustadoras no computador, não é? - indagou ele; Era uma pergunta retórica, o jovem sabia muito bem que ele conhecia a resposta - Isso tem acontecido com frequência de uns tempos pra cá.

O fantasma não se parecia em nada com o que as velhas lendas diziam; Longe de ser transparente e de fazer sussurros com a boca, também não se vestia de preto e não parecia interessado em atacá-lo. Antes parecia um ser polido e refinado.

-Quem é você? - perguntou o jovem, após uma longa e suarenta pausa. O fantasma riu, suavemente.

-Digamos que sou alguém que gosta da verdade. Não vá pensando que sou um "fantasminha camarada", não, longe disso. É que eu detesto essas modinhas, lendas urbanas, aparições bizarras em fotos, creepypastas e companhia. A esmagadora maioria disso tudo é falsa. Pode ter certeza de que os responsáveis por essas mentiras estão em minha companhia agora - ele riu outra vez, como que para suavizar o que dissera. Não conseguiu. - Antes de tudo, sou um amante das boas coisas - mexeu em um dos bolsos, tirou um potinho com balas e disse, educadamente: - Aceita? Não? Então comecemos.

-Comecemos o quê? Não quero começar nada! - esganiçou o jovem.

-Como não? Você procurava algo para te aterrorizar... Eu estava sem nada
para fazer, e então... Aqui estou. Vim lhe proporcionar o verdadeiro terror.

O jovem, se é que era possível, empalideceu ainda mais. A aparição sorriu quase que com bondade: - Relaxe - disse ela - Não é nada do que está pensando. Olhe, vamos dar um exemplo. Vê este livro? - e mostrou-lhe um volume encadernado em couro falso, sem nada escrito nas capas ou na lombada. Provavelmente não havia nada escrito em parte alguma. Mas continuou o fantasma: - Eu estava lendo-o enquanto esperava você me notar. Funciona assim: Eu te dou o livro; A partir do momento em que o tocar, estará dando um passo rumo à danação. Mas haverá um momento em que poderá, digamos, recuar. Se tocar o livro, mas resolver não abri-lo considerarei o seu medo, e você imediatamente dormirá e se lembrará de nada depois. E é isso. Claro que o livro é só um exemplo.

-E se eu não quiser sequer pegar o livro? É meu direito de escolha.

-Ah, sempre pegamos gente como você - suspirou o visitante - Não vê que não tem direito algum, e que podemos fazer você sofrer só de nos encarar? Partimos do princípio de que, se alguém procura o medo, uma hora esse alguém há de se deparar com ele. Você tem sorte de eu estar aqui. Mas enfim. Se não aceitares receber o livro, por exemplo, considerarei que recusou a chance de escapar e então apresentarei-lhe o verdadeiro terror. Venha, comecemos. Tome o livro.

-Ele não era só o exemplo?

-Não tenho nenhuma outra ideia melhor.Venha, deite-se, e pegue o livro.

A aparição, com um sarcástico sorriso, saiu de sua cama e deu-lhe o livro.

-Vamos, abra-o.

-Não quero.

-Então recusas o verdadeiro terror? Estou decepcionado. Vamos, durma.
-Quero te pedir uma coisa.


-Só posso lhe oferecer o medo.

-Faça um esforço.

-Diga lá então.

-Faça com que eu não esqueça isso.

-Garanto-lhe que abrindo o livro jamais se esquecerá.

-Mas não quero me danar eternamente. Porém, prefiro guardar esse encontro.

-E pensas que é assim? Você me chamou. Assumiu os riscos. Olhe, entenda, se fosse outro no meu lugar, a essa hora você já seria um espectro do pavor.

-Se pode me dar a escolha de sofrer ou não, por que não me deixa escolher guardar a experiência?

-Faz sentido. Dê-me o livro. Agora durma. Se lembrará de mim.

E o jovem dormiu.
Passaram-se muitos dias, e o moço evitou desesperadamente procurar o terror. Mas sentia-o a todo instante. Passou a temer olhar-se no espelho e encontrar o fantasma novamente. Fugiu de livros e sites de assombração. Não encarava mais ninguém nos olhos, por medo de, no reflexo, enxergar alguém atrás de si.

Começou a tomar calmantes. Tinha medo do escuro, indo dormir todos os dias com as luzes acesas, quando não ia para a cama ainda no claro. Por fim, lembrou-se de que a aparição havia deitado em seu colchão, e passou a dormir na sala. E arrependeu-se de ter desejado não esquecer.

***

Quando deram por si, não estavam mais sozinhos.

- Não há combinação mais bizarra, porém mais deliciosa do que o medo e o prazer – disse a assombração, tirando um pote de balas do bolso – Aceitam? Não? Pois bem, comecemos.

O casal estava aterrorizado. Esqueceram-se de sua nudez e do filme de terror que insistia em fazer ponta naquele espetáculo bizarro.

Ele riu, olhando para a televisão - Já ia me esquecendo, foi por isso que vim...odeio essas coisas. Horror barato. Permeado de sexo sujo. Poderia haver mais intensidade no prazer e menos clichês nas cenas macabras. Conheço o diretor dessa fita, pena não ter sido eu quem o pegou.

- Mas o que é você? – gaguejou o homem.

- Bom, o quê eu sou seria a pergunta ideal. Posso? – sem esperar resposta, aboletou-se numa poltrona – Digamos que sou um desmistificador. Vim lhes apresentar a real forma do medo. Não gosto dessas coisinhas, filmes de terror e sexo, mensagens subliminares, brincadeiras do copo, evocações de espíritos, aparições em vidros... Tudo isso é muito fantasioso, e eu sou muito real. E como partimos do princípio de que se não quiser comer da linguiça não se deve matar o porco, buscamos aqueles que tanto nos procuram nessas coisas.

- Nós não o chamamos aqui! – foi a vez de a mulher balbuciar.

- Ah não? E esse filme deplorável? Não me venham com essa de que estavam curtindo apenas as partes eróticas. Há fitas apropriadas para isso. Logo, vocês me chamaram. Agora vamos.

- Não! – o homem ergueu-se de um salto. O fantasma continuou sentado, levantando apenas uma sobrancelha – Aquiete-se, homem, apenas me escute.

Mas o sujeito tentou agarrar a aparição pelo pescoço. O ar ficou pesado.

- Você cometeu um erro, humano! – chiou a coisa, com mil vozes diferentes; Segurou o braço do infeliz, que começou a apodrecer.

As feições do fantasma estavam horrendas, contorcidas num sorriso de esgar:
 - Vejam! Uma cena erótica! Vamos, façam o amor! Vamos, façam! – a assombração amenizou um pouco as mil vozes: - Se não me tivesse desafiado, humano, eu lhes daria uma chance de escapar ao terror. Mas agora – estava novamente com as vozes malignas – Eu quero que façam amor! E você, mulher, cuidado quando acabarem, ou ficará para sempre ligada a ele, se é que me entende.

E saiu.
***

Foi com um suor frio a correr-lhe pela espinha que o jovem novamente entrou em um site de creeepypastas.

Ele havia tentado, desesperadamente, livrar-se daquela sensação asfixiante, a mania de perseguição... Mas
Deus sabia como havia sido difícil. Se é que Deus realmente tinha controle sobre esse tipo de coisa.

Por incrível que pareça, sentiu-se bem ao entrar no site. O medo desapareceu como mágica. Há dias que não se sentia assim... Normal.

O monitor apagou-se, do nada. Então ele o viu. Olhando-o. As pupilas brancas.

O terror voltou-lhe de um só golpe, junto com uma lufada daquela estranha sensação de bem estar; Ao olhar para sua cama, lá estava a aparição, um sorriso meio polido, meio debochado. E os olhos, normais. Humanos.

- Eu quase acredito que você gosta de mim.

- Precisava me livrar de uma vez de você.

- Isso já poderia ter acontecido, caso não tivesse implorado para esquecer.

- Sabe que não conseguiria. Preciso disso.

- Olhe, não gosto de melodramas. Sabe, isso que está fazendo. Faz-nos parecer um casal. Detesto esse tipo de coisa tanto quanto aquelas frases “Eu te vejo, e você me vê?” em imagens ditas “tenebrosas”. E também detesto pupilas brancas e aparições de mil vozes.

- Você acabou de me aparecer desse jeito.

- Ah, é? Estou muito clichê ultimamente. Quer uma bala?

- Não. O que está insinuando?

- Nada. Agora comecemos. Aqui tens a chave de um armário.

- Do meu armário.

- Que seja. Detesto monstros no armário também. Enfim. Aqui tens a chave do, digamos, seu armário. É realmente seu? Façamos um teste, vamos, você o conhece bem. Assim que colocares a chave na fechadura, estará dando um passo rumo à danação. Valem as mesmas regras do livro, aliás, lembra-se dele? Te empresto. Então, se deres uma volta na fechadura, darei0lhe a chance de deitar-se e dormir. Mas se destrancares a segunda volta, eu lhe deixarei em frente ao medo. Então, você estará danado. Que me diz?

O jovem tomou a chave. Estava suado e tremia, mas destrancou rapidamente a primeira volta. A visita aguardou.

- Vamos, não tenho o dia todo.

- Digamos que sou um amante das boas coisas – e destrancou a segunda.

O fantasma sumiu então.

O dono do armário olhou ao redor, como se certificando se aquilo estava realmente acontecendo. Sua mão ainda tinha a chave na fechadura. Um silêncio anormal abateu-se no quarto. Seu corpo arrepiou-se, e o susto comum que o forro de sua casa dava, ao estalar devido aos ratos, quase matou-o.

Virou-se para ir embora, mas uma aparição deformada agarrou-lhe e puxou para dentro do móvel de portas arreganhadas, tão rápido que o jovem mal escutou os gritos.

Quando finalmente deram por sua falta, só sentiram um doce e suave odor pairando pela casa.

***

O cheiro desagradável mal lhe incomodava agora. Há três dias que o cadáver dele ali jazia, e ela limitava-se a olhar para ele e balbuciar.

Finalmente, quando pareceu ser mais de meia noite, por puro instinto resolveu parar de fitar o que sobrara do seu namorado. E o que viu em seguida petrificou-a ainda mais.

- Adoro essas entradas triunfais, sabe. Um fantasma à meia noite, observando sua vítima, muito bom. – Ele olhou para o corpo que se decompunha

– Três dias... Talvez quatro ou cinco... Quem se importa? Mas vejo que ainda está ligada a ele. Sabia que isso pode causar algumas infecções cruéis?

- Você! O que quer agora?

- Ora, digamos que eu seja um admirador. Sabe, eu gosto das coisas apelativas, clichês, bordões do gênero, entende? Tudo isso me inspira. E convenhamos, esse cenário, para mim, é irresistível. Um cadáver, sua companheira, uma fita de terror (ainda está passando?), e um orgasmo de dias. Adorável! – exultou a aparição – Bom, vim lhe mostrar minha visão do medo. – Tirou um picolé dos bolsos – Aceita? É de morango. Gosto de morangos. Não quer? Então, comecemos.


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